quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Uma década sem Dorothy Stang e com muito sangue na terra

Os dois mandantes que participaram diretamente do caso, o “Bida” e o “Taradão”, estão soltos


A missionária Dorothy Stang foi assassinada em 12 de fevereiro de 2005, no interior de Anapu, cidade na beira da Transamazônica, no Pará. Desde então, parte da quadrilha que organizou o crime passou pela cadeia. Em um levantamento feito pela EBC (sim, é preciso fazer um levantamento para descobrir se alguém está preso), foi constatado que ninguém, efetivamente, está na cadeia pelo crime — apenas o pistoleiro que reincidiu em mais homicídios.

Os dois mandantes que participaram diretamente do caso, Vitalmiro Bastos de Moura, o “Bida”, e Regivaldo Pereira Galvão, o “Taradão”, estão soltos. Outros poderosos fazendeiros e madeireiros da região que também tiveram participação na organização e financiamento, conseguiram escapar já na fase dos inquéritos. Comenta-se pelo menos o nome de um grande madeireiro, que foi vice-prefeito em Anapu e candidato a prefeito em Altamira, que também teria participação no crime — Bida fugiu utilizando a pista de pouso de sua propriedade, num jogo aparentemente de cartas marcadas. Taradão foi condenado a 30 anos, mas não cumpriu a pena. Esses outros que permanecem anônimos na justiça integram o chamado “consórcio”, que ficou protegido pela impunidade em razão da “falta de provas”.

levantamento da EBC detalha o paradeiro dos criminosos:

Clodoaldo Batista, um dos autores do assassinato condenado a 18 anos de prisão, cumpre pena em regime semiaberto em um centro de recuperação em Belém. Rayfran das Neves Sales, autor dos disparos, foi condenado a 27 anos de prisão, cumpriu quase nove anos na cadeia e teve direito à progressão de regime, com prisão domiciliar. Em outubro de 2014, entretanto, ele foi detido novamente acusado de envolvimento em outro assassinato. Amair Feijoli Cunha, indicado como intermediário e condenado a 17 anos, cumpre prisão domiciliar em Tailândia, no sudeste do Pará.

Por que o sangue jorra na Amazônia?
Quando Laísa Santos Sampaio, irmã de Maria do Espírito Santo da Silva e cunhada de José Cláudio Ribeiro da Silva, foi receber o prêmio póstumo em homenagem a eles da ONU de “Heróis da Floresta”, ela disse: “Na Amazônia tem se intensificado casos de assassinatos de pessoas que como eles defendem a vida na floresta. A Amazônia é manchada de sangue. E essa mancha continua se espalhando.”

Na última década, de 2005 até 2014, segundo levantamento da Comissão Pastoral da Terra, foram assassinadas 325 pessoas em razão de conflitos no campo, sendo que mais da metade desses crimes aconteceram na Amazônia (67,3% dos casos). OGreenpeace chama de um “círculo vicioso de mortes, impunidade e mais violência alimenta uma indústria que vem financiando há anos o desmatamento da Amazônia.”

Os crimes seguem um padrão muito semelhante. São mortes por encomenda, serviço de pistolagem, por “empresas de segurança”, e as impunidades são sempre garantidas como parte de um sistema que, invertendo a lógica de Max Weber de que o Estado seria o detentor do monopólio do uso legítimo da força, na Amazônia, segundo interpreta a socióloga Violenta Loureiro, esse monopólio é compartilhado com o setor privado. O uso da força cabe tanto ao Estado quanto a classe dominante. Matar, na Amazônia, faz parte do jogo político-econômico.
Essa violência pode estar, ou não, associada ao desmatamento — ao contrário do que se popularizou dizer. Isso porque as áreas onde ocorre o desmatamento são também áreas violentas, com uso intensivo do trabalho escravo, assassinato dos trabalhadores e disputa, como numa “fronteira” de expansão, pela terra. Acontece que essa tese que associa desmatamento a assassinados não explica porque, nos últimos anos, diminuiu o desmatamento e continuou alto e constante o assassinato de trabalhadorxs no campo?

Do sul do Pará à Terra do Meio
Antes de ir para Anapu lutar ao lado dos pequenos agricultores sem-terra que chegavam por lá atrás de um pedaço de chão e de floresta, a missionária Dorothy Stang havia trabalhado, por muitos anos durante a violentíssima década de 1975 a 1985, em Jacundá, no sudeste do Pará. Ela sabia muito bem como essas áreas de disputa na Amazônia são violentas. Sabia como se organizava os sindicatos do crime, os consórcios das mortes dos latifundiários. E sabia que os pobres precisavam de um território para viver — que a migração como “peão do trecho” ou garimpeiro é uma terrível forma de exploração.

A região de Anapu, ao contrário de outros trechos da Transamazônica, não foi dividida entre pequenos proprietários, mas sim entre grandes latifúndios. Esses latifundiários não só grilaram terras como se beneficiaram de diversos esquemas de corrupção e de investimento públicos que se destinava a “desenvolver” a Amazônia. Foi ali que a “Máfia da Sudam” desviou milhões e milhões.

Por outro lado, chegavam sem parar pobres vindos do Maranhão, expulsos de outras áreas de conflitos nos sul do Pará, garimpeiros que não bamburraram. Por que não organizar esse pessoal para viver da floresta, ao contrário de deixar as terras publicas e a floresta serem consumidas pelos mesmos mafiosos que roubaram milhões do Estado e matam tanta gente? Explicando de forma bem simples, a lógica dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável que foram implantados em Anapu tinha tudo para dar certo. Não fosse a funesta aliança entre setores corruptos do Estado e um sindicato do crime que explora os recursos naturais locais para acumular mais e mais dinheiro.
Assentados do PDS Esperança denunciam extração ilegal de madeira em 2011. Foto: Felipe Milanez

O Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança foi talvez o estopim que provocou o consorcio a tramar a morte da missionária. Do outro lado da Transamazônica, um outro PDS Viola Jatobá, vive as mesmas dificuldades. Foi preciso colocar uma guarita, a pedido dos assentados, para evitar a saída indiscriminada de madeira. É difícil imaginar que a guarita vai dar conta de segurar toda a riqueza que está sendo saqueada. Uma investigação do Greenpeace mostrou como ocorre a lavagem da madeira ilegal que sai do Viola Jatobá, feita pela empresa Vitória Régia, de um dos cabeças do assassinato de Dorothy que escapou do inquérito e protegido pela impunidade. O relatório pode ser baixado aqui.

Chama a atenção que essa mesma máfia que organiza a extração ilegal de madeiras e grilagem de terras, responsável pela morte da missionária Dorothy Stang, também atua distribuindo crédito ilegal para legalização da produção de carvão, que é consumido pelas siderúrgicas do polo de Marabá. Você pode conferir essa outra profunda investigação do Greenpeace clicando aqui.

A produção ilegal de carvão é um dos maiores vetores de desmatamento, de trabalho escravo e de violências. O casal José Cláudio e Maria lutavam contra a produção ilegal de carvão dentro do assentamento agroextrativista onde viviam, em Nova Ipixuna. E por isso eram ameaçados de morte. É constrangedor pensar que a mesma máfia que matou Dorothy também tenha envolvimento, ao menos no aspecto econômico, com a morte de Ze Cláudio e Maria.

A economia e a política da morte e do saque
É a economia, e a organização política, o que tem provocado tantas mortes na Amazônia. A economia predatória, baseada seja na extração dos recursos naturais para a exportação – o chamado neo-extrativismo. Ou a economia da grilagem de terras, da renda fundiária. Esses dois sistemas se articulam na Amazônia, e essa articulação é feita por uma elite extremamente violenta, escravagista, que são os latifundiários, a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) que ocupa, hoje, o espaço da violenta União Democrática Ruralista (UDR).

É por isso que mesmo que o desmatamento tenha diminuído, muita gente continua sendo morta. A luta pela terra e pelos recursos dos territórios continua mesmo depois de criados os assentamentos, por exemplo, com a exploração da madeira, ou a expansão da mineração sobre terra de camponeses – no caso do sul do Pará, pela Vale.

E depois das mortes físicas, é preciso também operar as mortes simbólicas para esse sistema funcionar. Dorothy Stang, a senhora de 73 anos assassinada com seis tiros, passou a ser difamada localmente como uma guerrilheira e traficante de armas. O que pode parecer — e é — bizarro, faz algum sentido no imaginário local pois evoca-se a memória da Guerrilha do Araguaia, fortemente presente. E como os assassinos do Araguaia continuam impunes e os corpos dos guerrilheiros seguem desaparecidos, faz um certo sentido evocar essa história de terror presente no imaginário local.

Com um Congresso reacionário que representa os interesses desses grupos violentos do campo, e como governo federal aliado a esses grupos e acelerando ainda mais o avanço de mega-projetos que provocam mais disputas por territórios, tudo indica que, infelizmente, os próximos anos devem ser ainda mais duros e violentos. A morte de Dorothy Stang não é um evento do passado, mas uma premonição de um futuro desigual, triste e violento caso essa trajetória não seja mudada.


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