segunda-feira, 8 de julho de 2013

SFB atropela direitos de população tradicional em leilão de floresta pública no Oeste do Pará

Flona Crepori
Edital de concessão para exploração madeireira incide sobre áreas de uso de famílias da Flona do Crepori, cuja ocupação o órgão fingiu desconhecer

Em 31 de maio último, o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) tornou público o edital para concessão de áreas destinadas a exploração madeireira na Floresta Nacional (Flona) do Crepori, situada no Oeste do estado do Pará. Pelo documento, é possível saber com algum grau de detalhe o potencial produtivo de cada um dos quatro lotes a ser concedido, bem como os – baixos – valores demandados pelo SFB às futuras concessionárias, que adquirirão o direito de explorar, ao todo, 442.388,24 hectares de floresta. O que o edital não mostra é que ali residem famílias que tradicionalmente se relacionam com esse território há gerações, e cuja área necessária à sua reprodução social e cultural coincide com porções das florestas destinadas ao leilão. Essa sobreposição, bem como as principais características dessa população, não eram desconhecidas do órgão, muito ao contrário: constavam de relatório entregue ao SFB, que decidiu simplesmente desconsiderá-lo, passando por cima dos direitos envolvidos.

A Flona do Crepori é uma das doze florestas públicas passíveis de concessão florestal em 2013, segundo o mais recente Plano Anual de Outorga Florestal do SFB. Cabe lembrar que as concessões foram viabilizadas pela  Lei 11.284 de 2006, a Lei de Gestão de Florestas Públicas (LGFP), partindo da premissa de que as florestas públicas deveriam servir para impulsionar a economia e gerar renda com a transformação de seus recursos madeireiros em altas cifras – em geral por empresas de grande porte, que reúnem os requisitos demandados pelos editais. Pela LGFP, é possível entrarem em leilão áreas de unidades em que habitem populações tradicionais, nos termos previstos pela modalidade de Flona. No entanto, em seu artigo 11º, inciso IV, a lei é bastante clara quando fala que deve ser considerada “a exclusão das terras indígenas, das áreas ocupadas por comunidades locais e das áreas de interesse para a criação de unidades de conservação de proteção integral”. Ou seja, comunidades locais podem residir dentro de uma unidade de conservação leiloada, mas a concessão não poderia abarcar as áreas da unidade ocupadas por essa população. E é justamente esse um dos pontos em que a efetividade da lei patina, e os direitos dessas populações são eventualmente solapados.

O caso da Flona do Crepori é bastante emblemático nesse sentido. Criada em 2006, trata-se de uma unidade relativamente recente e de grande dimensão, com 740.661 hectares, situada na bacia do rio Tapajós, no município de Jacareacanga (PA). Segundo a Lei 9.985 de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), cada unidade deve dispor de um plano de manejo, definido como “documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade”. No interior do ICMBio, órgão gestor desses territórios, há pouco consenso sobre as características desse documento, seu alcance, seus parâmetros de elaboração. Assim, é comum que o plano de manejo leve anos em sua confecção.

Pela LGFP, porém, uma unidade de conservação só pode ter áreas leiloadas quando dispuser de um plano de manejo. Na Flona do Crepori, esse documento foi realizado com apoio do SFB e veio à luz no tempo recorde de quatro anos após sua criação, e bem em tempo de ir a pré-leilão como previsto, no final de 2010. Há Flonas criadas há mais de 25 anos que ainda não tiveram seus planos de manejo aprovados.
Dos 740.661 hectares da Flona Crepori, 442.388,24 serão concedidos à grandes madeireiras por 40 anos - Mapa SFB

À rapidez, contudo, não correspondeu qualidade – ao menos não no quesito socioeconômico. O censo elaborado pelo consórcio contratado para confecção do plano de manejo da Flona do Crepori chegou a identificar famílias dentro da unidade de conservação, mas taxou-as com um definitivo: “não se configuram como população tradicional”. A caracterização não passa de outra forma de dizer: “não são sujeitos de direitos”. Ora, diante de afirmação de tal gravidade, esperar-se-ia um mínimo de detalhamento sobre a ocupação encontrada na Flona, sobre o que se entende por população tradicional (outra categoria em torno da qual não há consenso), e as razões pelas quais os dois polos não se encontram. Não é o que se vê no plano de manejo.

Diante de tamanha lacuna, o próprio ICMBio solicitou, em 2011, a complementação  do censo da Flona a um grupo interdisciplinar de pesquisadores, que tinham o objetivo de elaborar a caracterização da população ali residente. Ao longo de um mês, a equipe, composta pelo cientista social Mauricio Torres e pelo geofísico Juan Doblas, percorreu a Flona do Crepori com essa tarefa.

O que veio à tona, particularmente no rio das Tropas, que corta longitudinalmente a Flona do Crepori, foram as características complexas de uma ocupação com elementos de muitas comunidades tradicionais da Amazônia. Ali acorreram migrantes ainda no século XIX, para exploração da borracha, e desde então vivenciaram momentos de pujança econômica da região: borracha, peles de gatos e garimpo. Particularmente em relação a este último, a ocupação do rio das Tropas merece destaque: nesse local teria se originado a descoberta das primeiras jazidas de ouro na Amazônia, justamente no rio das Tropas, em 1958. Os moradores atuais do rio das Tropas carregam essa memória, e parte dela, bem como as características desse campesinato extrativista e suas áreas de uso foram registradas no trabalho dos pesquisadores.

O trabalho dos pesquisadores foi entregue ao ICMBio em 2012, e uma cópia dele foi depositada junto ao SFB. Em 31 de maio deste ano, como dito, sai o edital de concessão. Ou seja, o SFB reproduz à exaustão a disposição do pior cego: o que não quer ver. Diante do número de florestas previstas para concessão, e sabendo que há polêmicas envolvendo desrespeito aos direitos das populações de outras florestas já em concessão, essa atuação da autarquia é extremamente preocupante, e indica a opção por beneficiar o grande capital em detrimento das populações residentes. 
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