terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

'A sagrada herança de Ir. Dorothy precisa ser defendida e multiplicada'.


Entrevista especial com Zenilda Petry, Margarida Pantoja e Jane Dwyer
 “Um martírio é sempre gerador de ressurreição”.  É com essas palavras de entusiasmo e esperança que a presidente da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) – Regional de Belém, Pará, Ir.  Zenilda Petry, lembra os seis anos do falecimento da missionária católica Dorothy Stang, assassinada em 12 de fevereiro de 2005, depois de sofrer diversas ameaças de morte de grileiros e madeireiros da região.  Dorothy foi morta com tiros a queima-roupa, aos 73 anos de idade, em Anapu.

Embora o martírio da Ir.  Dorothy tenha evidenciado “ainda mais a força e a ganância cobiçosa de grupos e pessoas movidas por projetos opostos, por outro lado, esta morte despertou também a consciência, talvez um tanto adormecida de muitas pessoas.  Isto resultou em resistência, solidariedade e certeza do caminho a prosseguir daquelas famílias e de uma rede maior de solidariedade.  Igualmente, fortifica o povo de Anapu”, constata Zenilda, em entrevista à IHU On-Line concedida por e-mail.

Ir.  Jane Dwyer trabalha na Comissão Pastoral da Terra (CPT) e conviveu com Dorothy em 2005.  Hoje, ela acompanha as famílias nos PDS, em Anapu, e diz que a situação na região é complicada.  “Em 2010, tentaram tomar conta do projeto, desfazer o PDS e aproveitar a madeira para fins pessoais.  (...) No Pará é difícil a lei ser observada e cumprida.  O poder local se une com o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, cujo tesoureiro é também o presidente da Câmara Municipal.  O poder público, junto com o sindicato, aliou-se com os madeireiros do município, principalmente o vice-prefeito, que é madeireiro e fazendeiro”.

Ir.  Margarida Pantoja, coordenadora do Comitê Dorothy Stang, também conversou com a IHU On-Line, por e-mail, e se diz motivada e impotente, seis anos após o martírio da amiga.  “Ir.  Dorothy não é para ser lembrada; é para ser imitada.  Ela nos deu lições de organização, parceiras, persistência.  (...) Impotente.  Sim, impotente por perceber que ainda temos pessoas praticando a exploração ilegal de madeira sem uma preocupação com o futuro do planeta”.

Na semana passada, religiosos e religiosos de Anapu e cidades da região participam de celebrações e atividades em memória à morte de Ir.  Dorothy Stang.  

Confira a entrevista com as três religiosas:

IHU On-Line – A senhora conheceu pessoalmente Ir.  Dorothy ou trabalhou com ela?
Zenilda Petry – Sim, conheci Ir.  Dorothy já no período final de sua vida, quando vinha sofrendo ameaças de forma mais permanente e sistemática.  A sua atuação em Anapu era partilhada por suas colegas de Congregação que atuavam na mesma comunidade onde eu vivia na época.  Nas suas diversas vindas a Belém, fui conhecendo-a e me inteirando do significado de sua vida e missão em Anapu.

IHU On-Line – Que imagem guarda dela?
Zenilda Petry – De uma mulher consagrada convicta e feliz.  Com seu olhar voltado sempre para a defesa da vida dos pobres, da luta pela dignidade e cidadania dos despossuídos, ela encarnou um modo de ser e de viver de forma totalmente despojada que deixava a gente até constrangida e questionada.  Despojamento e simplicidade, aliada a uma alegria permanente e uma fé inquebrantável são traços de sua imagem que guardo.

IHU On-Line - Qual é a atual situação do PDS Esperança, hoje, seis anos após a morte da Ir.  Dorothy Stang?
Jane Dwyer – A situação do PDS Esperança está precária.  No ano 2009, o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, com o apoio da prefeitura local, fez uma intervenção na Associação do PDS Esperança, desmontando toda sua diretoria eleita e os trabalhos que vinham sendo feito durante estes últimos anos.  Até dezembro de 2009, não havia invasão de madeireiro no PDS.  O povo caminhava e trabalhava junto.

Sem conhecimento da diretoria do PDS, em 2010, tentaram tomar conta do projeto, desfazer o PDS e aproveitar a madeira para fins pessoais.  O PDS Esperança tem mais de 15 mil hectares de floresta virgem, com madeiras nobres e boas.  O solo também é o melhor em Anapu, próprio para cacau.  Além do mais, é limite com a floresta do PDS, a floresta da Trincheira Bacaja, ou seja, terras indígenas.  O PDS Esperança dá acesso a esta floresta indígena e, devido à invasão que acontece desde dezembro de 2009, a floresta também está invadida.

IHU On-Line – Quais são as maiores dificuldades encontradas por vocês para dar continuidade ao projeto de desenvolvimento sustentável na floresta?
Jane Dwyer – Falta de apoio do Incra, do Ibama, do Sema e de autoridades federais, estaduais e locais.  O ano 2010 foi o primeiro em que o Incra realmente conseguiu tomar uma posição eficiente e em favor do povo na superintendência de Santarém, dando apoio aos seus técnicos no trabalho de Anapu.

No Pará é difícil a lei ser observada e cumprida.  O poder local se une com o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, cujo tesoureiro é também o presidente da Câmara Municipal.  O poder público, junto com o sindicato, aliou-se com os madeireiros no município, principalmente o vice-prefeito que é madeireiro e fazendeiro.  Os assentados que defendem o Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança se confrontam então com madeireiros, a direção do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, o presidente da Câmara Municipal e a Prefeitura.

Margarida Pantoja – Um sonho do tamanho do “Sonho de Dorothy” precisa da implementação ágil de políticas públicas voltadas para o campo da região Amazônica; precisa de estradas em boas condições; de equipamentos e capacitação para desenvolver a agricultura com qualidade.  Isto só para citar algumas dificuldades existentes que há para quem quiser levar adiante este grande sonho.

Em Anapu, houve ainda a cooptação e a divisão dos trabalhadores dos PDS e, acima de tudo, a impunidade.  Insisto com isto, pois, acredito que, se os culpados diretos e indiretos dos assassinatos de Dorothy, Adelaide, Dema, Dezinho e muitos outros tivessem sido investigados profundamente, eles teriam ajudado a destruir o consórcio que ainda amedronta e ameaça as pessoas impedindo-as de realizar o grande sonho da Ir.  Dorothy.

IHU On-Line – Qual sua avaliação dos conflitos ocorridos recentemente no PDS Esperança?
Jane Dwyer – Acompanhamos um grupo de 40 famílias que realmente entendem, abraçam e defendem o Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança – entendido no Incra como um “jeito amazônico de fazer a reforma agrária”.  Estas famílias fecharam a vicinal que dá entrada ao PDS Esperança.  Empatou somente a entrada e saída de caminhões madeireiros.  Houve uma audiência pública patrocinada e dirigida pela Ouvidoria Agrária Federal, 25 de janeiro em Anapu.

As decisões apoiam a posição e as reivindicações dos assentados do PDS que ainda estão acampados na beira da estrada.  Ficarão no acampamento até a construção das guaritas empatada a passagem de caminhões madeireiros.  Nossa avaliação é que as autoridades competentes do Incra de Anapu, de Santarém e Federal, o Mistério Público Federal e as autoridades todas que acompanharam o ouvidor agrário, Gercino, deram apoio aos assentados e suas reivindicações.  Este apoio ainda está no papel.  O povo espera e trabalha para que este apoio se tornar realidade.

IHU On-Line – Em que sentido o martírio de Ir.  Dorothy tem sido um símbolo de resistência e perseverança para a população de Anapu?
Zenilda Petry – A população de Anapu, como todas as populações, é constituída de pessoas com visões e compreensões diversificadas.  Em se tratando do grupo de famílias que aderiu à mística do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), o martírio de Ir.  Dorothy evidenciou ainda mais a força e a ganância cobiçosa de grupos e pessoas movidas por projetos opostos.  Por outro lado, esta morte despertou também a consciência, talvez um tanto adormecida de muitas pessoas.  Isto resultou em resistência, solidariedade e certeza do caminho a prosseguir daquelas famílias e de uma rede maior de solidariedade.  Igualmente, fortifica o povo de Anapu.  Um martírio é sempre gerador de ressurreição.  Ir.  Dorothy foi assassinada, mas está muito viva na vida de quem comunga de seu sonho.

IHU On-Line – Há outros religiosos ameaçados de morte no Pará?
Zenilda Petry – Quem continua a luta de Ir.  Dorothy em Anapu sofre ameaças, difamações e fortes oposições.  Em todos os lugares onde há conflitos de terras, existência de trabalho escravo, implantação de grandes projetos de barragens e mineradoras, madeireiras e agronegócio e há pessoas da Igreja, bispos, sacerdotes, religiosas e religiosos, lideranças leigas que se opõem, as ameaças de morte são permanentes.  Há uma lista muito grande de pessoas ameaçadas de morte.

IHU On-Line – Quais são os principais desafios pastorais na região?
Zenilda Petry – Como em todas as regiões do Brasil, os desafios pastorais, neste tempo que se chama hoje, são muito grandes.  Nossa sociedade sempre mais distanciada dos valores evangélicos, seduzida pelo consumismo, individualismo, competição, lucro, vive a dimensão religiosa mais voltada para um sentir emocional.  Nossa região vive este desafio de uma verdadeira e renovada evangelização, com os agravantes da realidade: distâncias geográficas, dificuldade de acesso, populações isoladas, escassez de agentes de pastoral e tantas outras.  Há, porém, muita vida que circula em meio a estes desafios.  Deus continua a passear com a mulher e o homem na “brisa da tarde” (Gn 3,8) neste imenso paraíso Amazônico.  O que continua ocorrendo é que a nudez de valores evangélicos leva a muitos a se esconderem da presença do divino (cf Gn 3,8).

IHU On-Line – Qual seu sentimento, seis anos após a morte de Ir.  Dorothy?
Zenilda Petry – Um sentir renovado de que a sagrada herança de Ir.  Dorothy precisa ser defendida e multiplicada.  Esta morte não foi em vão.  Os tiros emblemáticos que tiraram sua vida continuam a ecoar.

Uma bala assassina atingiu sua cabeça, outra seu peito e outra seu ventre.  Tentaram matar suas ideias, seu modo de amar e sentir, sua forma de gerar vida.  Esta herança precisa ser cultivada: pensar além dos horizontes da ordem estabelecida, cultivar sentimentos de bondade, de gratidão, de generosidade, gerar formas novas de organização social e religiosa.

Margarida Pantoja – Motivada.  Acho que temos motivos para celebrar, fazer memória.  Afinal, esta mulher deixou um legado de esperança e ousadia!  Ir.  Dorothy não é para ser lembrada, é para ser imitada.  Ela nos deu lições de organização, parceiras, persistência.

Impotente.  Sim, impotente por perceber que ainda temos pessoas praticando a exploração ilegal de madeira sem uma preocupação com o futuro do planeta.  Não percebem que o hoje compromete o futuro de seus netos e gerações futuras.

IHU On-Line – Qual a importância de recordar a morte de Ir.  Dorothy?
Zenilda Petry – Recordar é trazer novamente ao coração (re+cordar); é fazer memória viva e afetiva de algo ou de alguém que soube intuir o coração da existência, que soube colocar seu projeto nas estrelas, que penetrou no mistério mais profundo do ser e do fazer.  Recordar a morte de Ir.  Dorothy é fazer memória de sua trajetória e de sua ação em defesa da vida de tudo e de todos.

Margarida Pantoja – Dorothy Stang é símbolo de luta e resistência, celebrar sua memória é, portanto, gritar ao mundo que ainda existem pessoas que apostam em seus sonhos e acreditam na possibilidade de uma Amazônia ambientalmente sustentável.

IHU On-Line – O que a Igreja e a sociedade podem aprender a partir da luta de Ir.  Dorothy?
Margarida Pantoja – Eu sempre me surpreendo com a capacidade organizacional de Dorothy e posso até pontuar algumas características que acho bem importante para a sociedade e a Igreja.  São elas:
1. Mapeou toda área de seu interesse e andava com estes mapas sempre em sua “boroca” (sacola de pano).
2. Fez levantamento dos possíveis donos dos lotes, descobriu onde havia grilagens e denunciou aos órgãos competentes.
3. Não trabalhava sozinha.
4. Descobriu o Projeto, Plano de Desenvolvimento Sustentável – PDS, que foi elaborado pelo governo FHC.  Portanto, PDS não é invenção de Dorothy, é coisa de governo, pensado por uma equipe técnica.  Ela descobriu isso que estava guardadinho em algum lugar e fez o governo executá-lo.
5. Escrevia tudo que acontecia, mesmo documentos, tudo com sua letrinha trêmula de idosa, mas, “tá tudo lá registrado, pra quem quiser ver e comprovar”, até citando nomes de seus algozes com muita antecedência.
6. Informava aos interessados toda caminhada feita pelo seu povo e pelos fazendeiros e madeireiros.
7. Ia à delegacia, ao Ibama, no MPF e estadual e onde pudesse denunciar os crimes.
8. Fazia parcerias com entidades e pessoas estratégicas para suas lutas e para realizar seus sonhos.
9. Sempre se colocava ao lado do povo e do meio ambiente.
10. Andava somente com o necessário em suas viagens.
11. Conhecia muito bem o alvo de sua luta.
12. Era minuciosa em suas anotações.
13. Era uma grande mística que, aliada a seu espírito de luta, fez dela uma grande mulher, soube unir ação e oração.

IHU On-Line – Como vê a continuidade do trabalho de Dorothy em prol dos trabalhadores e do meio ambiente?
Margarida Pantoja – A Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Anapu, as Irmãs de Notre Dame de Namur (congregação da qual Dorothy participava), os trabalhadores e trabalhadoras dos PDS, e tantas pessoas que continuam acreditando neste sonho dorothyano traçam um novo perfil.  Agora não só há uma Dorothy, mas agora “todos somos Dorothy”.  Portanto, a continuidade deste trabalho é fundamental para que se garanta de fato a vida saudável no planeta e a dignidade para as gerações futuras, não só humanas mas de todos os seres vivos.  Anapu precisa de nossa solidariedade, de nosso apoio, de nossa assinatura nas horas de colher assinaturas para cobrar direitos.

Enfim, Dorothy “trabalhou em movimentos sociais no Pará com projetos de desenvolvimento sustentável, ultrapassando as fronteiras do município de Anapu, ganhando reconhecimento nacional e internacional”.  A continuidade desta missão está acontecendo de forma muito mais ágil, porque a causa ganhou centenas de milhares de adeptos no mundo inteiro.  Por isso, Dorothy vive sempre, sempre, sempre.

Fonte: IHU - Instituto Humanitas Unisinos
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