terça-feira, 24 de novembro de 2009

Cara a cara com a morte

Conflito no campo: Irmã Geraldina vive tentando driblar seus algozes e, apesar das ameaças e emboscadas, o medo não a impede de lutar ao lado de 85 famílias de sem-terra no Salto da Divisa (MG)

Maria Clara Prates*

Um calafrio percorreu o corpo franzino da religiosa quando uma voz masculina previu um destino trágico para ela: “Você só vai parar quando acontecer com você o mesmo que aconteceu com a irmã Dorothy Stang (1)”. Tem sido assim, marcados pelo terror, perseguições e ameaças, os últimos três anos da vida da irmã dominicana da Congregação Romana de São Domingos, Geralda Magela da Fonseca, de 47 anos, ou irmã Geraldinha, que luta ao lado de 85 famílias de sem-terra no município de Salto da Divisa, no Vale do Jequitinhonha (MG), uma das regiões mais pobres do mundo.


Há pelo menos um mês, irmã Geraldinha vive como foragida. Deixou a cidade e nunca sabe aonde vai dormir para tentar driblar seus algozes, que a ameaçam desde 2006. Como proteção, conta apenas com a ajuda de amigos. A polícia afirma que, até que fique comprovada a veracidade das ameaças registradas em vários boletins de ocorrências, não pode fazer nada.

Foi assim também com a irmã Dorothy, que recebeu inúmeras ameaças até que sua luta foi encerrada com seis tiros: um na cabeça e cinco no corpo.

Apesar da fé, irmã Geraldinha confessa que vive hoje com medo e admite que são muitas as semelhanças de sua luta com a missionária Dorothy, mas, independentemente do risco, garante que vai retornar ao acampamento na Fazenda Manga do Gustavo, vizinha à Fazenda Monte Cristo, pertencente à Fundação Tinô Cunha, que está em processo de desapropriação. A área já foi considerada improdutiva, mas o processo nº 54170003519/2005-30, para desapropriação, ainda se arrasta na burocracia federal e faz com que o clima fique ainda mais tenso na região, que tem como característica os grandes latifúndios.

Perseguição
Com pouco mais de 1,5 metro e 42 quilos, cabelos presos por uma longa trança, irmã Geraldinha se defende como pode. Além de não ter paradeiro certo, não sai desacompanhada e trocou o chip do celular. A sua indignação, no entanto, é inversamente proporcional ao corpo frágil. “Deixei o acampamento porque não suportava mais tantos telefonemas ameaçadores. Vou voltar sim e em breve. Com minha saída, as famílias estão enfrentando uma pressão ainda maior e não podem desistir da luta”, afirma. Segundo a religiosa, a ocupação da Manga do Gustavo foi feita por 185 famílias, mas o terror e a espera de mais de três anos fizeram com que cerca de 100 desistissem.

Irmã Geraldinha afirma que o cerco a ela se fechou ainda mais depois da eleição do atual prefeito, Ronaldo Cunha Peixoto (DEM), que teria vínculo com a Fundação Tinô da Cunha, proprietária da fazenda. “Já escapei de duas emboscadas, porque fui avisada a tempo por pessoas que perceberam uma movimentação diferente na estrada que dá acesso ao acampamento. Da mesma forma, fui avisada que, no dia 29, estava sendo procurada por forasteiros em um Celta preto, com vidros escuros, que não eram da cidade”, relata. Foi essa perseguição intensa que fez com que a religiosa deixasse a região.

Para fugir do cerco, a religiosa conta que se disfarçou para deixar o acampamento, onde estava sendo aguardada por desconhecidos. “Tinha acabado de chegar quando fui avisada que desconhecidos procuravam por mim. Assim, aproveitei que estava chovendo e me disfarcei com várias peças de roupa, que me deram uma aparência de uma pessoa mais gorda”, relembra. Para deixar o lugar, diz que foi providenciada uma moto e usou como rota de fuga picadas abertas em terrenos da região. “De novo, consegui sair ilesa, mas até quando?”, indaga, mostrando um documento elaborado pela CPT que traz a macabra relação de ocorrências e ameaças sofridas pela religiosa.

1 - Violência
Missionária americana, naturalizada brasileira, Dorothy Stang foi assassinada aos 73 anos em uma emboscada em Anapu, no Pará, cidade que se tornou um dos principais pontos de conflitos na disputa por terra. A freira trabalhava na Comissão Pastoral da Terra e lutava ao lado da comunidade pela reforma agrária. Denunciou, em diversas ocasiões, a violência fundiária e a grilagem de terras na região. Doroty recebeu ameaças de morte, sem se deixar intimidar, até que sua luta pelo direito dos pequenos agricultores foi encerrada com seis tiros à queima-roupa em 12 de fevereiro de 2005: um na cabeça e cinco no corpo.

AUDIÊNCIA
A Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas fará audiência pública na cidade para conhecer melhor a situação. Mais uma porque o drama de irmã Geraldinha e das famílias já foi constatado pelo Programa Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. O vice-coordenador da secretaria, Oscar Gatica, esteve em Salto da Divisa, em 17 e 18 de setembro, e produziu um parecer no qual recomenda ao Ministério Público, à Polícia Militar e à Defensoria Pública apurar a situação e oferecer proteção à irmã.

Entretanto, a religiosa garante que, até agora, nada foi feito. Mais lenha na fogueiraDona de um estilo discreto, irmã Geraldinha não faz acusações nem aponta nomes. Diz apenas que quatro pessoas, entre elas um ex-vereador, estão respondendo a processo por ter ateado fogo próximo ao acampamento para aterrorizar as famílias. As ameaças e investidas estão registradas em seis boletins de ocorrências, que ainda não se traduziram em identificação ou punição dos culpados, relata a religiosa.Segundo ela, a audiência no dia 28 com os quatro suspeitos serviu apenas para colocar mais lenha na fogueira que já arde há três anos.

“Essa foi uma das razões que me empurrou para fora da cidade e do meu trabalho junto aos carentes. Os quatro disseram que queriam que o caso fosse julgado para comprovar sua inocência e não aceitaram a transação penal proposta”, lembra.Irmã Geraldinha conta que sua história de luta teve início em 1993, quando deixou São Paulo para trabalhar em Salto da Divisa, cidade escolhida pela congregação para formar nova comunidade de inserção, que teria como alvo os mais pobres. Inicialmente, o trabalho foi de assistir velhos, abandonados à própria sorte por não poderem mais trabalhar nas fazendas e crianças, que necessitavam de reforço escolar.

“Mas o trabalho foi aumentando e, diante da falta de emprego, vimos que era possível conseguir um pedaço de terra para os mais carentes, já que a região é toda de latifúndios”, explica.A religiosa é filha de lavradores, uma família cristã de 15 filhos, e diz que cresceu na prática religiosa, em São Domingos do Prata, na região central de Minas.

“Toda a nossa família foi sustentada com o trabalho da terra, sei da sua importância”, diz, lembrando que tem dois irmãos que são pastores da Igreja Quadrangular. Foi nesse caldo cultural que irmã Geraldinha escolheu a vida religiosa, à qual se dedica desde 1991. “Quando comecei, fiz um trabalho com as irmãs salesianas, na capital paulista, assistindo crianças de rua. Tive assim condições de ver que era possível colocar em prática as ensinamentos religiosos. Das crianças de rua paulista para a luta em Salto da Divisa, esse foi um caminho natural para irmão Geraldinha. “Eu me ofereci para participar.”

Silêncio
A reportagem tentou falar com o prefeito Ronaldo Cunha Peixoto sem sucesso. Procurado na sexta-feira na prefeitura, foi informado que o expediente administrativo era somente até as 13h e, por isso, ele não se encontrava. O Correio/Estado de Minas procurou a assessora de imprensa do prefeito, a quem informou o assunto da reportagem. Ela retornou a ligação e disse que não tinha conseguido contato com o prefeito, uma vez que ele participava de uma série de reuniões com sua equipe.

Fonte:
Correio Braziliense
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